Dispensa de projetos para obras públicas reduz qualidade e facilita atos escusos
No Museu Carnavalet, em Paris, há uma pintura de 1765, de Pierre Demachy, com uma cena curiosa. Nela, o arquiteto Jacques Soufflot apresenta ao rei Luiz XV e sua Corte os desenhos de seu projeto para a futura igreja de Santa Genoveva. Ao fundo da cena, ergue-se a maquete da fachada projetada para a igreja, feita em escala de real grandeza. Imagine-se: maquete no tamanho da futura construção. Assim, não haveria dúvida entre projeto e obra contratados pelo rei.
O edifício hoje é o Panteão Nacional francês.
Foi com o Renascimento que se passou a antecipar no projeto as definições que se materializarão na obra, como exaltado na pintura de Demachy. O método é hoje de utilização universal.
Ademais, nos principais países desenvolvidos, obras importantes, públicas ou privadas, são escolhidas por concurso de projeto. A França já ao tempo de Luiz XV assim procedia e há décadas é regra. O projeto da Casa Branca, em Washington, foi definido por concurso ainda no século XVIII. Também o foi o Edifício Marco Zero, obra privada, recentemente inaugurado em Nova York, no local das Torres Gêmeas. Tudo em busca de maior qualidade e preços justos.
Apesar dessa bem sucedida experiência internacional, o Brasil optou por um caminho próprio. A lei 8666, de 1993, permitiu licitar a obra pública com projeto incompleto, transferindo a etapa de elaboração dos detalhes construtivos do projetista para o construtor. Esse jeitinho brasileiro supostamente economizaria no prazo de obra, desejável em tempos de inflação.
Mas, vencida a inflação em 1994, o jeitinho não foi desarmado. Ao contrário. Traçado o caminho, tornou-se insaciável o desejo por mais ‘facilidades’.
Poucos anos depois, a Petrobras foi autorizada a ter mais ‘liberdade’ em suas licitações. Mais recentemente, para os estádios da Copa do Mundo, criou-se o famigerado RDC, lei que permite contratar a construção mesmo sem projeto algum: a empreiteira projeta e constrói. O mecanismo foi estendido às obras para a Olimpíada. Depois para obras do PAC, a seguir para os portos, para hospitais, para o programa Minha Casa Minha Vida.
Finalmente, agora em 2014, o governo federal propôs a ampliação das facilidades do RDC para todas as obras públicas, federais, estaduais e municipais. O tema está em discussão no Senado, com oposição das entidades da arquitetura, da engenharia e do planejamento.
Não vejo como essa proposta possa ir à frente depois da Operação Lava-Jato.
Refinarias, complexos petroquímicos, edifícios, obras simples ou não – todos devem ser projetados e detalhados, com autonomia, independentemente da contratação das construtoras. Está demonstrado que a falta de projeto completo é um estímulo ao sobrepreço, a benesses escusas e rebaixa a qualidade das obras.
É possível que os problemas que a Petrobras está enfrentando dêm como sub-produto a abolição desse método heterodoxo adotado pelo país e somente pelo país. Se assim for, veremos a recuperação das atividades de projeto e dos sistemas de planejamento para nossas cidades – e certamente a qualificação das obras públicas brasileiras.
Não será o caso dos “protagonistas” colhidos pela Operação Lava-Jato irem para o Panteão, lugar de heróis da pátria. Mas sua prática de malfeitos terá evidenciado um caminho prejudicial ao país – e, paradoxal e ironicamente, eles terão realizado um bom serviço.
* Sérgio Magalhães é arquiteto, doutor em Urbanismo, professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ e presidente nacional do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB).
Publicado em 19/02/2015. Fonte: Revista Ciência Hoje/SBPC Edição 322, jan/fev 2015 pg 51 – Coluna “Cidade Inteira”.