Para pioneira de Brasília e esposa de Lelé, Arquitetura precisa ser funcional e possível
O endereço é de pioneira do Planalto Central: 714 Sul, uma das primeiras quadras construídas de Brasília. Dentro da casa, móveis feitos em série para a inauguração da capital federal. “Funcionais e possíveis”, explica a dona – e autora dos projetos. Alda Rabello Cunha, aliás, resume a boa Arquitetura a esses dois conceitos. “Arquiteto é aquele que resolve funcionalmente a vivência, a casa do homem. E de uma forma que as pessoas não se sintam agredidas – com menos enfeite e mais solução.”
Alda chegou a Brasília antes da inauguração. Veio do Rio de Janeiro, onde morava com a família – mas faz questão de lembrar que nasceu em Corumbá, pantanal sul-mato-grossense. “Quando criança, íamos para a avenida principal para ver os navios-gaiola no rio. Lá de longe, naquele horizonte livre. Isso faz a pessoa diferente”.
Hoje aposentada pelo Ministério da Agricultura, a arquiteta foi servidora pública quase a vida toda. O primeiro cargo foi no Grupo de Trabalho de Brasília, do antigo Departamento Administrativo do Serviço Público, ainda no Rio. “Era a equipe que preparava os complementos da cidade, como é que se iria ocupar Brasília, que estava em construção. Fiquei encarregada de pensar e desenhar os padrões para o mobiliário, que precisava ficar pronto em 7 meses.”
A arquiteta inovou ao propor o julgamento em duas fases para a confecção dos móveis – uma de preço e uma de projeto. E mostra o sofá em que estamos sentados, pensado por ela naquela época. “Não é ruim, não é extravagante. É funcional. E foi o possível” – afirma, repetindo mais uma vez os conceitos.
Ela aproveita para fazer referência ao arquiteto e urbanista João Filgueiras Lima, o Lelé, com quem se casou em 1960 e teve três filhas: Luciana, Adriana e Sônia. “Tem que haver os ‘niemeyers’, pessoas que alcem os voos mais altos. Mas tem que haver os ‘lelés’, aqueles disciplinados, que fazem obras possíveis. Porque é preciso atender às pessoas. Acho que Arquitetura é isso, solucionar a ocupação urbana e a habitação de forma funcional.”
Alda estudou na Escola Nacional de Arquitetura da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, primeiro curso superior do país na área. Era uma das quatro mulheres da turma, que tinha cerca de 40 estudantes. “A moda, na época, era que a mulher fosse professora. Nunca quis”.
Com 16 anos, foi aprovada em segundo lugar no vestibular. Seria arquiteta e urbanista. Sobre o machismo de uma profissão tão masculina na época, é categórica: “Quando me perguntam sobre preconceito com as mulheres da Arquitetura na minha época, sempre respondo que nunca me dei conta. Atropelei, passei por cima. Preferi não tomar conhecimento.”
Na carreira, também atuou como paisagista – e lamenta a efemeridade desse tipo de Arquitetura. “As pessoas destratam o paisagismo. Como é uma coisa mais vulnerável, se sentem no direito de mexer, mudar tudo. Em pouco tempo, seu projeto não está mais ali”. Mas foi nessa atividade que produziu o trabalho de que tem mais orgulho. “O que mais gosto de ter feito é o paisagismo dos CIEP [as escolas de tempo integral conhecidas como “Brizolões”], no Rio, que fiz para o Oscar Niemeyer, que assinou os prédios. Aquele padrão de grama e concreto agradou muito na época.”
Para Alda, essa “época” foi a era de ouro da Arquitetura Brasileira. “O marco foi o Ministério da Educação e Cultura, no Rio de Janeiro [Edifício Gustavo Capanema]. Foi ali que houve a quebra, sabe? Se rachou o cristal da Arquitetura do enfeite no Brasil. Aquele foi o grupo mais importante da Arquitetura brasileira – Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos, Oscar Niemeyer e, principalmente, Lucio Costa. Essa turma toda aprendeu, entendeu Le Corbusier.” O arquiteto francês, precursor do modernismo, é a referência maior de Alda na profissão. “Agora mesmo estou relendo um livro dele. E cada vez entendo mais. Foi mal interpretado e injustiçado, mas teve uma visão brilhante, à frente do seu tempo”.
Digo que essa entrevista faz parte de uma homenagem às arquitetas pelo Dia da Mulher. Ela repreende, diz que não pode ter diferenciação. “O papel da mulher na Arquitetura não tem nenhuma especialidade. Somos iguais aos homens. Casei, fui esposa, tive filhas. Mas nada disso me fez me achar outro tipo de profissional. Quando perguntam o que faço, digo que sou ‘arquiteto’. Não tem diferença.”
Peço então que deixe uma mensagem às ‘arquitetos’. “Elas precisam entender que Arquitetura é funcionalismo. Uma cidade com Arquitetura e Urbanismo pensados é uma cidade que funciona – e é isso. As pessoas não precisam perceber a Arquitetura o tempo todo. Elas só precisam se sentir bem. Não tem que ficar admirando. É o racional, o simples, o não-enfeite. Arquiteto não é decorador, jardineiro, não pode ser. A Arquitetura é muito maior.”
Por Emerson Fraga, analista de Comunicação do CAU/BR
Fonte: CAU/BR