Passados 10 anos da promulgação do Estatuto da Cidade, como tem sido a implementação dos seus instrumentos legais a fim de evitar o padrão de urbanização excludente tão reproduzido nas cidades brasileiras? O INCT Observatório das Metrópoles, com o apoio da Fundação Ford, dá início ao projeto “Planejamento urbano e direitos humanos no Brasil: implementação do direito à moradia e à cidade” visando monitorar e influenciar políticas nos municípios do Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza com foco na função social da propriedade, inclusão socioterritorial da população de baixa renda e ampliação do acesso aos serviços urbanos.
O Projeto “Planejamento urbano e direitos humanos no Brasil: implementação do direito à moradia e à cidade e planejamento no contexto de conflitos sociais” faz parte de uma proposta submetida pelo INCT Observatório das Metrópoles/ETTERN/IPPUR/UFRJ à Fundação Ford, dentro do Programa Direitos Humanos/Brasil & Direito à Cidade.
O Observatório das Metrópoles irá desenvolver o subprojeto “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados a implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil – avanços e bloqueios” com o objetivo conduzir uma pesquisa advocacy para monitorar e influenciar a implementação de políticas, projetos e programas estabelecidos pelas municipalidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Fortaleza, desenhados para fazer cumprir os instrumentos do Estatuto da Cidade abordando o cumprimento da função social da propriedade, a inclusão socioterritorial da população de baixa renda, ampliação do acesso e permanência à moradia, ao solo e aos serviços urbanos.
Segundo o professor Orlando Alves dos Santos Júnior, coordenador do estudo de caso sobre o Rio de Janeiro, um quadro de referência será desenvolvido para fornecer uma base para a compreensão dos mecanismos e processos através dos quais os direitos à moradia e à cidade são promovidos ou obstruídos, e para subsidiar a participação e o trabalho de diferentes atores sobre o desenvolvimento urbano e as questões das cidades.
Na cidade de São Paulo, o projeto será coordenado pela professora da FAU/USP e Relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, e pela professora Paula Freire Santoro (FAU/USP). Na cidade de Fortaleza, o estudo de caso será desenvolvido pela equipe do professor da UFC e pesquisador do Observatório das Metrópoles, Renato Pequeno.
Direito à Moradia e a mercantilização da cidade
O Observatório das Metrópoles tem mostrado, por meio do projeto “Metropolização e Megaeventos: os impactos da Copa do Mundo e das Olimpíadas nas Metrópoles brasileiras”, que o Brasil tem vivido um novo ciclo de desenvolvimento nos últimos anos, com as cidades brasileiras passando a constituir atrativas fronteiras para o capital financeiro e serem incluídas nos circuitos mundiais de acumulação do capital, exatamente em razão do ciclo de prosperidade e estabilidade que o país atravessa, combinado com a existência de ativos urbanos (imóveis e infraestrutura) passíveis de serem espoliados, ou seja, comprados a preços desvalorizados, e integrados aos circuitos internacionalizados de valorização financeira.
Além disso, as cidades brasileiras estão experimentando a emergência de uma governança empreendedora, na qual planejamento e regulação são substituídos por um modelo de intervenção baseado na criação de exceções na legislação e procedimentos junto a um enfraquecimento dos canais institucionais de participação democrática.
De acordo com Orlando Alves dos Santos Jr., a crescente hegemonia de uma governança empreendedorista baseada na lógica de empreendimento urbano, que concebe a cidade como commodities, desencadeia uma dinâmica econômica, social e política que contraria os princípios do direito à moradia e à cidade. A falta de implementação dos instrumentos legais para exclusão sócio-espacial consagrada no Estatuto da Cidade, dez anos após sua promulgação, reflete os conflitos entre estas duas abordagens. “Se estes instrumentos não são efetivamente aplicados, as cidades brasileiras irão continuar a reproduzir o padrão de urbanização excludente, e irão continuar a enfrentar a mercantilização geradora de impactos graves para os grupos sociais mais vulneráveis. É importante lembrar que o acesso a oportunidades para alcançar um padrão adequado de viver de acordo com as comunidades vulneráveis e pobres está diretamente relacionada com a sua localização no território da cidade”, afirma.
Nesse cenário, a questão da irregularidade fundiária e a falta de acesso a serviços básicos é uma dos problemas urbanos centrais, que desafiam governos e moradores. Por um lado, a falta de segurança da posse pode resultar em remoções forçadas em um grande número de causas, tais como projetos urbanos de larga escala, projetos urbanos gentrificadores associados à preparação para a Copa do Mundo de 2014 e às Olimpíadas de 2016. Por outro, a regularização de assentamentos informais permite a sua incorporação na estrutura e mercado urbanos, resultando em valorização da terra e maiores gastos com serviços urbanos, o que dificulta a permanência de grande parte dos ocupantes nas áreas que foram melhoradas (processo esse que tem sido popularmente conhecido como “expulsão branca” promovida pelo mercado).
Para enfrentar esse novo contexto é que o projeto “Estratégias e instrumentos de planejamento e regulação urbanística voltados a implementação do direito à moradia e à cidade no Brasil – avanços e bloqueios” buscará compreender os mecanismos e processos que bloqueiam e/ou favorecem a implementação dos instrumentos do Estatuto da Cidade na perspectiva não apenas da regularização fundiária e inclusão socioterritorial mas também da ampliação do acesso e permanência ao solo e moradia adequada, garantindo, promovendo e protegendo o direito a cidade.
Objetivos Específicos
A. Identificar, avaliar e monitorar o cumprimento dos instrumentos do Estatuto da Cidade, principalmente as Zonas Especiais de Interesse Social, os instrumentos de cumprimento da função social da propriedade (Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios; IPTU Progressivo no Tempo e Desapropriação com Títulos da Dívida Pública) e dos instrumentos de regularização fundiária nas cidades brasileiras (Concessão de Uso Especial para Moradia, Usucapião Especial de Imóvel Urbano, Direito de Superfície e Demarcação Urbanística, entre outros), no contexto de políticas e programas municipais e projetos urbanos em larga escala (Operações Urbanas, Parcerias Público-Privadas, Plano de Aceleração do Crescimento – PAC Favelas e mobilidade urbana) que permitam refletir sobre os seguintes aspectos:
– cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade;
– resistência de assentamentos precários a remoções e despejos forçados;
– inclusão socioterritorial e efetivação de direitos socioeconômicos por meio da regularização e integração de assentamentos precários a cidade e da ampliação do acesso a terra e moradia para os grupos pobres e vulneráveis;
B. Fortalecer a sociedade civil organizada e suas redes para o debate público e participação na formulação, implementação e monitoramento de políticas, programas e projetos municipais, para alcançar os governos e os tomadores de decisão através da mídia e estratégias de defesa.
Metodologia
O projeto irá realizar pesquisa advocacy para analisar, monitorar e influenciar as políticas municipais urbanas e programas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, com relação aos seus impactos positivos e negativos sobre os direitos à moradia e à cidade dos pobres urbanos, e para alcançar os meios de comunicação, organizações da sociedade civil, políticos, governos e outras partes interessadas.
As análises desenvolvidas buscarão identificar:
(i) conflitos de terra e propriedade e disputas em torno da intervenção urbana selecionada;
(ii) mecanismos e arranjos legais e institucionais da política, programa ou projeto selecionado;
(iii) análise dos conflitos relacionados à intervenção do projeto, identificando os agentes envolvidos no mesmo;
(iv) a ocorrência de eventuais processos de judicialização dos conflitos relacionados à intervenção;
(v) políticas e instrumentos adotados para proteger os direitos das comunidades pobres e vulneráveis contra os impactos negativos resultantes da intervenção urbana.
A metodologia visa a participação dos stakeholders [grupos-alvo] nos processos de planejamento e monitoramento, através do envolvimento e de organizações da sociedade civil, autoridades públicas, promotores públicos, defensores públicos, decisores políticos e os meios de comunicação e, se for o caso, também implicará o desenvolvimento de pesquisa participativa e oficinas com tais grupos.
O projeto será implementado por acadêmicos e consultores em áreas chave como economia, legislação, meio ambiente, desenvolvimento urbano, entre outras.
Os estudos a serem desenvolvidos na pesquisa serão conduzidos em cinco etapas, a saber:
I – Identificação do problema e definição do quadro de referência conceitual e legal
II – Definição metodológica e planejamento da pesquisa
III – Pesquisa de campo / estudo a ser pesquisado envolvendo políticas, programas ou projetos urbanos nas três cidades selecionadas.
IV – Mapeamento de relevantes stakeholders [grupos-alvo] de forma a identificar e analisar seus papéis no cumprimento destas políticas e programas, assim como os beneficiários;
V – Avaliação das políticas, programas ou projetos selecionados;
VI – Consolidação dos resultados e produtos.
Indicadores de monitoramento
Estabelecer indicadores de monitoramento para medir mudanças políticas a partir da capacitação e fortalecimento das organizações da sociedade civil e do público é um desafio. Não menos desafiador é medir os impactos positivos e negativos sobre os grupos-alvo específicos, resultantes da implementação de políticas e programas públicos, especialmente porque esses impactos não só podem estar associados ao engajamento ou desengajamento do público, mas a uma combinação de múltiplos interesses e relações de poder. Por isso, alguns indicadores podem ser aplicados para avaliar o progresso:
1. Melhora das políticas e programas urbanos. Mudanças na arena política pública ocorrem em etapas, incluindo o desenvolvimento de políticas, propostas políticas, a demonstração de apoio, a adoção, financiamento e implementação. Melhores políticas são alcançados com mudanças nas condições para a mudança política identificada na pesquisa;
2. Produção e disseminação de informações qualificadas através da publicação de estudos e análises de políticas públicas municipais urbanas e programas, para chegar à mídia e ao público;
3. Reforço da capacidade organizacional de organizações da sociedade civil e redes que fazem advocacy e trabalho de orientação sobre o direito à moradia e à cidade. Desenvolvimento de suas capacidades básicas é fundamental para a advocacia e a política de esforços de mudança;
4. Reforço das alianças entre diferentes atores que trabalham em questões de direitos urbanos, através da melhoria dos níveis de coordenação, colaboração e alinhamento missão. Prevê-se que tais alianças trazer mudanças na comunidade e nas relações institucionais;
5. Fortalecimento da base de apoio através de uma maior participação da sociedade civil e do ativismo, e atenção positiva da mídia, elaborado em bases, liderança e apoio institucional em trabalhar para mudanças políticas. Melhorar a amplitude, profundidade e influência do apoio entre o público, grupos de interesse, e formadores de opinião em geral para os direitos à moradia e à cidade é uma das principais condições para suportar mudanças de política.