Artigo do presidente do IAB-DN reafirma a necessidade de revogação do RDC e critica a MP 700
O modo como o Brasil trata suas cidades e seu território está entre as causas da atual crise política. E vem mais complicação aí.
A promiscuidade entre agentes públicos e privados, como explicitado pela Operação Lava-Jato, é facilitada pela falta de planejamento e projeto do espaço e dos equipamentos. Mas isso se dá por inépcia? Ou será uma promoção encadeada, um constructo, como sinalizam as leis de licitações?
Pouco a pouco diminuíram as exigências para licitar obra pública. Vejamos:
A) A Lei 8.666/93 permitiu licitar sem projeto completo, admitindo o que chamou por projeto básico (incompleto);
B) após, concedeu-se à Petrobras um regime próprio, que dispensou o projeto básico;
C) em 2011, baseado no modelo da Petrobras, criou-se o Regime de Contratação Integrada/RDC, que delega à empreiteira fazer o projeto da obra que construirá, mas, no caso, “aplicável exclusivamente” às obras da Copa, Olimpíadas e aeroportos;
D) em 2012, estendeu-se o regime para obras do PAC e do SUS. Em 2013, para obras da Saúde e da Educação;
E) Em 2015, a Contratação Integrada/RDC passou a valer para todas as obras federais, estaduais e municipais.
Licitação sem projeto resulta em obra com custo sem limite, prazo ampliado e qualidade baixa — demonstrado pelos preços dos estádios da Copa, pelas obras paradas do PAC, pela Refinaria Abreu e Lima, com custo dez vezes maior.
Agora, em dezembro, chegou ao ápice esse suposto constructo. Foi editada a MP 700/15, pela qual a empreiteira contratada por Contratação Integrada (isto é, sem projeto) recebe do Estado o poder de desapropriação. Inclui obra de urbanização, de renovação urbana ou de reparcelamento do solo. A empreiteira poderá desapropriar “imóvel ocupado coletivamente por assentamentos sujeitos a regularização fundiária de interesse social” (favelas e loteamentos). Os bens desapropriados poderão compor fundo de investimento. A receita da revenda é da empresa, ressarcido o governo pelos desembolsos feitos. Se, após a desapropriação, não prosseguir o negócio, a empreiteira poderá alienar o bem.
No âmbito territorial, a MP 700/15 há de ter implicações a avaliar. No âmbito urbano, por certo haverá consequências políticas e sociais graves, visto o direito das populações atingíveis, pois a MP é potencialmente dirigida às favelas. Como pode o governo transferir a uma empreiteira o poder de definir o que fazer com um trecho da cidade? E que isso se dê sem prévio projeto? Sem ouvir os cidadãos? De fato, o governo alienará o que não lhe pertence. A cidade é da cidadania, não é do governo.
É preciso distinguir o coelho do gato.
Implantar água e esgoto em favelas não tem mistério. As concessionárias não o fazem não é por impossibilidade técnica. Não é por falta de dinheiro que os governos não implantam as redes, pois gastam em obras deletérias, do tipo teleférico, o que daria para sanear dezenas de favelas.
Com projetos bem feitos e com os moradores participando, é possível abrir ruas, urbanizar favelas e reassentar famílias de áreas de risco, com custo compatível com os escassos recursos públicos destinados a áreas pobres. A grande maioria das favelas cariocas foi plenamente urbanizada pelo programa Favela-Bairro. Mas os governos precisam permanecer e impor as leis, inclusive as urbanísticas, como em qualquer bairro. Sem controle governamental, a anomia vigorará.
É uma falácia dizer que não há segurança pública porque não há ruas em favelas. O Complexo da Maré é a contraprova: é plano, urbanizado, ruas retas, e, no entanto, ficou décadas sob jugo de bandidos.
O Brasil precisa adequar-se às exigências contemporâneas. A redução das desigualdades é uma delas. O planejamento territorial e urbano é instrumento para tanto, e é função de Estado de que o Estado brasileiro não pode se abster.
É indispensável a revogação do Regime de Contratação Integrada/RDC para a saúde política do país. Fará bem ao espaço construído brasileiro. Fará bem às finanças da nação. Fará bem à democracia.
A cidade não está à venda, a cidadania não tem preço.
Sérgio Magalhães é arquiteto, presidente do IAB-DN
smc@centroin.com
Reprodução do artigo “A venda. A que preço?”, publicado em “O Globo” de 30/01/2015