Por: John Hockenberry
Originalmente publicado na Metropolis Magazine como “Playing in Traffic“, este artigo de Jack Hockenberry investiga a relação entre o homem e o veículo, ilustrando a dinâmica complexa criada em Nova Iorque – uma cidade com mais de 2,1 milhões de veículos registrados. Ao contrário dos esquemas que colocavam o carro como elemento central, do famoso ex-chefe de planejamento urbano de Nova Iorque, Robert Moses, Hockenberry argumenta que a cidade é o “espaço negativo”, ao passo que os veículos são obscurecidos pelo nosso inconsciente.
É uma curiosidade da vida urbana moderna que, quanto mais carros se aglomeram em cidades, mais eles se tornam invisíveis. É uma característica padrão em qualquer cidade grande de hoje. Infelizmente, não podemos controlá-la a partir do assento do condutor – por mais que gostaríamos de acenar as mãos e assistir através de nossos pára-brisas os carros desaparecendo e libertando-nos da prisão do tráfego. A invisibilidade de que estou falando só ocorre se você é um pedestre ou ciclista. O número de veículos motorizados estacionados ou em movimento em qualquer hora nas ruas de Nova Iorque é surpreendente. De acordo com o Departamento de Veículos Motorizados do Estado, estima-se que 2,1 milhões estão registrados na cidade. Ainda assim, registrá-los nunca os farão totalmente visíveis quando estamos andando nas ruas. A cidade é o espaço negativo e é assim que nossos olhos percebem cada vez mais as paisagens urbanas. Tudo em torno dos carros e caminhões se entrelaçada pelo olho e, apesar de os veículos estarem presentes, gradualmente aprendemos a ignorá-los, menos quando estamos parados na linha direta do fluxo de trânsito.
Mesmo assim, as pessoas regularmente caminham pelas ruas, entre os carros, de maneiras inexplicáveis. Isso acontece na West Side Highway, em Manhattan, o tempo todo. Não são apenas os carros que se tornaram objetos invisíveis; as próprias estradas são “aparições de asfalto” por onde as pessoas passam apressadas com os olhos no novo Hudson River Park e em suas redes de calçadas gramadas e ciclovias. É como se existisse dois domínios separados que não se cruzam: a cidade dos veículos e todo o resto. A cidade peatonal tem suas atrações turísticas famosas, como a Macy’s, os museus, e o novo santuário 9/11 Ground Zero. O mesmo acontece com a cidade de veículos. Elas são os ônibus de dois andares com a parte de cima descoberta inexplicavelmente cheios de pessoas perfeitamente felizes em sentar-se na chuva, calor, neve ou assistindo um super-slow-motion da cidade em 3D com uma trilha sonora muito ruim. Algumas pessoas também podem ser vistas gravando vídeos de seu trajeto de ônibus, embora seja difícil imaginar o público para um documentário desses, onde aparecem todos os lugares interessantes que elas não pararam para visitar. Em geral, os veículos e os civis coexistem a um grau notável, mas as interseções entre esses dois mundos pode ser fatal e é uma importante missão do desenho urbano descobrir como surgem os sinais e as placas que mantem os pedestres e veículos separados.
Esse conto sobre as duas cidades que ocupam o mesmo espaço é visto melhor a partir de uma bicicleta. Com o inverno deste ano, que foi particularmente longo e sombrio, meus primeiros longos passeios de bicicleta revelaram uma cultura de rua ressurgente emergindo em cada lugar para caminhadas e passeios. Há pessoas em todos os lugares, usando os espaços que teriam sido cobertos de concreto há apenas alguns anos atrás. A proliferação de trailers de comida, café de rua, clubes pop-up e espaços de arte em edifícios bem à beira de estruturas rodoviárias retratam uma população ignorando a cidade do automóvel, não sendo derrotada por ela. A jornada da Ponte Verrazano-Narrows ao norte, ao longo da Brooklyn-Queens Expressway (BQE), por meio de Williamsburg, e do outro lado da Ponte Kosciuszko em Queens é viva, com novos edifícios residenciais e revitalizações. Há uma cultura animada de cafés ao longo da BQE, como se os fantasmas dos bairros de outrora tivessem encontrado um caminho de volta além do esquecimento originado através do falecido Robert Moses.
Muito foi publicado a favor e contra Moses, o mestre construtor, visionário de transporte, político e artista das motosserras. (Mais recentemente, no entanto, revisionistas reconsideraram o legado de Moses). Opor-se ao trabalho de Moses deu a Lewis Mumford um ideologia e à ativista Jane Jacobs uma causa. A história de Moses e Jacobs pode, inclusive, se tornar um dia uma ópera em tom bíblico. O argumento durante a vida de Moses e do consenso desde a sua morte, em 1981, foi que ele sacrificou os bairros em prol de seu conceito de artérias, fazendo surgir carros e caminhões. Este projeto da cidade moderna do século XX tornou-se o adubo para o impasse e não seu antídoto.
O pensamento de Moses nos leva para mais perto da expansão e do congestionamento de Lagos ou Cairo, criando o sonho da cidade do futuro na Feira Mundial de 1964 no Queens. Sua visão da futura cidade construída de concreto, asfalto, aço e rodas – que foi o destino de praticamente todas as áreas urbanas nos Estados Unidos – pode ser visto em meu caderno de anotações de 50 anos atrás: trilhos e vias arborizadas para substituir metrôs; “Studyspheres” pessoais conectadas globalmente que substituem as escolas e bibliotecas, com carros como os agentes de libertação. O legado de Moses é um sistema de transporte público que adoece e que demoliu guetos e desmatou florestas. Até mesmo o local da Feira Mundial se tornou uma piada visual em filmes como Homens de Preto e Homem de Ferro. Os leitores desta revista devem bem compreender o resto.
Quase duas gerações de iniciativas políticas e ainda não se conseguiu desfazer o que fez Moses (se revelou muito mais caro demolir os monumentos de Moses do que construí-los), mas em silêncio o povo da cidade aperfeiçoou uma forma de renovação urbana que faz parte de uma renovação interior. Com seus olhos desviados, as pessoas têm encontrado uma solução alternativa ao projeto de Moses. O South Bronx (batizado por Moses como Cross Bronx Expressway) ou o Red Hook, no Brooklyn (atravessado pelo Gowanus Expressway e pelo canal poluído de mesmo nome), se tornaram enclaves hipsters, como jardins nos lotes vagos, e as empresas de artesanato local acabaram encontrando uma maneira de se misturar com os moradores dos conjuntos habitacionais, para o benefício de ambos. Isso também pode ser visto no desenvolvimento bem sucedido de Dumbo e do Brooklyn Bridge Park que surgiram a sombra do BQE, onde as crianças brincam em um carrossel renovado sob estradas que ninguém mais presta atenção. O que é ainda mais surpreendente sobre o Brooklyn Bridge Park é como o barulho do tráfego constante é ignorado, tanto quanto a rodovia de dois andares. O recurso de projeto mais notável no parque, na verdade, é um grande acostamento de terra que protege parte do parque do som do tráfego na BQE. Quando esse trecho da rodovia for fechado, o silêncio será claramente ensurdecedor e será um sinal de como os ouvidos dos nova-iorquinos têm filtrado a “cidade do veículo” tanto quanto seus olhos.
As pessoas não percebem os carros e as rodovias hoje, porque estes, na verdade, não são a cidade. Eles nunca foram. Quando a neve finalmente derreteu nessa primavera, as estradas e pontes esburacadas de Moses pareciam piores do que nunca. As pessoas desses novos enclaves surgiram com os seus óculos de sol e bicicletas, puxaram algumas mesas e cadeiras para desfrutar da cidade e observar o legado do mestre das obras que continuam a derreter lentamente junto com as pilhas de lama enegrecidas do fim de inverno. Nova Iorque é quase uma utopia nos dias de hoje, mas os espaços ao redor dos carros e do asfalto se tornaram destinos de pessoas, lugares e bairros. Hoje as estradas e pontes da cidade do veículo, em Nova Iorque, são lugares ocasionalmente úteis para visitar, mas ninguém jamais iria querer morar lá.
Fonte: Archydaily